
A transferência de competências das câmaras para as freguesias ao abrigo da Lei n.º 50/2018 e do Decreto-Lei n.º 57/2019 representava uma oportunidade para a afirmação do papel das freguesias como “polos essenciais da democracia de proximidade e da igualdade no acesso aos serviços públicos”. Era também uma oportunidade para facilitar a vida dos munícipes, aproximando-os dos centros de decisão, sobretudo em questões da sua vida quotidiana.
Tratava-se, no fundo, de dar algum poder e dignidade às freguesias, reforçando a sua capacidade de intervenção em pequenos domínios da vida pública. Ainda há poucos anos se questionou a necessidade de freguesias. E, na verdade, as freguesias só fazem sentido se tiverem alguma capacidade de atuação, se forem capazes de facilitar a vida dos cidadãos e não forem um poder meramente simbólico porque, se esse poder for apenas simbólico, está condenado a desvanecer-se e a desaparecer, e com ele a razão da existência das próprias freguesias.
Defendo, desde há muito, que as freguesias devem ter competências efetivas e meios para as materializar. Infelizmente, em relação a esta transferência de competências feita, agora, pela câmara da Sertã para as freguesias do município, considero que foi mais uma oportunidade perdida.
Todo o processo foi conduzido de forma displicente. Reconheço, contudo, que a câmara municipal acabou por gerir este dossiê com a habilidade política de quem é capaz de baralhar e dar novamente o mesmo jogo. A câmara não queria dar novas competências às freguesias e acabou por consegui-lo. Empatou o assunto enquanto pôde, ultrapassando todos os prazos e, finalmente, resolveu em poucos dias um processo que teve dois anos para construir cuidadosamente. Com isto, dada a urgência em se acautelar a transferência, evitou a discussão aprofundada dos documentos legais que a suportam, e da maior parte das competências a transferir, obrigando as freguesias a aceitar uma visão muito parcelar e limitada deste processo. Desta forma, acabou por prevalecer a visão redutora da câmara municipal que não quer abdicar do seu poder de decisão sobre as freguesias e sobre os munícipes, mesmo em simples matérias do dia-a-dia.
Basicamente, as competências agora transferidas são as que já eram exercidas pelas juntas ao abrigo da legislação anterior. Foram transferidas apenas as competências em matéria de “limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e sumidouros” e “gestão e manutenção de espaços verdes”. Acresce a “gestão e manutenção corrente de feiras e mercados”, no caso de Cernache do Bonjardim. Confrange-me ver que a câmara e as juntas limitam a sua discussão aos quilómetros de bermas e valetas a limpar, e ao custo por quilómetro, como se o papel das juntas fosse apenas limpar bermas e valetas.
Então e as restantes competências previstas no Decreto-Lei 57/2019 de 30 de Abril? Essas continuam todas na Câmara, considerando-se que são “indispensáveis para a gestão direta do Município da Sertã e assumem natureza estruturante e são do interesse geral e comum a toda ou uma parte significativa do Município”.
Vejamos, então, quais são essas competências que ficaram na Câmara Municipal por serem “indispensáveis para a gestão direta do Município da Sertã”:
- c) A manutenção, reparação e substituição do mobiliário urbano instalado no espaço público, com exceção daquele que seja objeto de concessão; (A reparação de um banco de jardim terá de ser feita pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- e) A realização de pequenas reparações nos estabelecimentos de educação pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico; (A pintura de um muro numa escola, nas freguesias onde existam escolas, terá de ser feita pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- f) A manutenção dos espaços envolventes dos estabelecimentos de educação pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico; (Limpezas ou pequenas reparações à volta das escolas terão de ser feitas pela Câmara Municipal. São “indispensáveis para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- g) A utilização e ocupação da via pública; (A criação de uma esplanada num café de uma aldeia terá de ser autorizada pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- h) O licenciamento da afixação de publicidade de natureza comercial, quando a mensagem está relacionada com bens ou serviços comercializados no próprio estabelecimento ou ocupa o domínio público contíguo à fachada do mesmo; (Um pequeno anúncio de um estabelecimento comercial, quando afixado na fachada do próprio estabelecimento tem de ser autorizado pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- i) A autorização da atividade de exploração de máquinas de diversão; (A instalação de uma simples máquina de videojogos ou de “flippers” no café da aldeia tem de ser autorizada pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- j) A autorização da colocação de recintos improvisados; (A colocação de uma tenda ou de um palco para um qualquer evento de uma associação, por exemplo, tem de ser autorizada pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- k) A autorização da realização de espetáculos desportivos e divertimentos na via pública, jardins e outros lugares públicos ao ar livre, desde que estes se realizem exclusivamente na sua área de jurisdição; (O pequeno baile ou o torneio de malha na aldeia têm de ser autorizados pela Câmara Municipal. São “indispensáveis para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- l) A autorização da realização de acampamentos ocasionais; (Um acampamento de um grupo de amigos tem de ser tem de ser autorizado pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
- m) A autorização da realização de fogueiras e do lançamento e queima de artigos pirotécnicos, designadamente foguetes e balonas, bem como a autorização ou receção das comunicações prévias relativas a queimas e queimadas. (Uma fogueira de Natal numa vila ou aldeia tem de ser autorizada pela Câmara Municipal. É “indispensável para a gestão direta do Município da Sertã.”)
Realmente, é caso para perguntar (com ironia, claro) como é que a câmara poderia sobreviver, se não ficasse com estas competências imprescindíveis? Sem ironia, é caso para dizer que a não transferência de algumas destas competências para as freguesias, não permitindo sequer a sua discussão, representa um atestado de incompetência passado pela câmara municipal a todos os Presidentes de junta e aos seus executivos.
Não tenho dúvidas de que, se o processo fosse feito verdadeiramente com intenção de transferir competências e iniciado atempadamente, e não feito à pressa já depois de ter terminado o prazo para a sua implementação, podia-se ter discutido calmamente todas as competências a transferir e, certamente, muitos Presidentes de junta iriam pedir mais competências do que aquelas que agora obtiveram. Desta forma, mal houve tempo para se discutir as bermas e as valetas.
Talvez nem todas as freguesias tenham a capacidade de aceitar algumas destas competências. Mas algumas freguesias têm, certamente, essa capacidade, pela sua dimensão e pela sua organização. Faz sentido que essas freguesias não tenham as competências que descrevi? Afinal, para que servem as freguesias? Faz sentido que todas as freguesias se limitem apenas à preocupação com a limpeza de bermas e valetas? Como dizia há dias um amigo, com este acordo as Juntas de Freguesia estão condenadas a ser os cantoneiros do município. E apenas isso.